Última alteração: 2019-06-28
Resumo
O ser humano, como espécie, surgiu há cerca de 200.000 anos herdando dos seus antepassados evolutivos hominídeos a distintiva faculdade de produzir instrumentos. Dentro do escopo das ferramentas que habilmente fazia as mais resistentes ao tempo foram os objetos de pedra. Desta forma, é compreensível perceber que a esmagadora maioria dos testemunhos da nossa trajetória terrena consista precisamente destes implementos e que essa representatividade reverbere nas reservas técnicas dos museus, particularmente nos contextos de coleções oriundas de projetos de impacto ambiental, multiplicados na década passada. Não há como por uma pedra sobre isto, deixando a questão de lado. Além do volume, esses utensílios consistem quase exclusivamente nos únicos testemunhos residuais de incontáveis grupos humanos remotos. Assim sendo, preservar, gerir e documentar - do melhor modo possível - tal acervo tornam-se passos iniciais necessários para acessar o universo informativo intrínseco, inscrito naquelas pedras talhadas e polidas. Entretanto, trocando em miúdos, o que seria este: ‘do melhor modo possível’? Uma busca pela literatura especializada nas bases informatizadas não revelou nenhuma obra existente em português que apontasse um caminho para o tratamento documental específico. Além do mais, tais instrumentos, especialmente os lascados, são completamente alheios ao nosso senso comum, ao quotidiano e mesmo ao paradigma vigente de objeto manufaturado, de sorte que caminhamos sobre eles sem nem ao menos nos dar conta das pedras no meio do caminho, pisoteando-as a custa de um ‘progresso’ que costuma não deixar pedra sobre pedra daquele passado indígena desconhecido. A partir destas constatações emerge a questão: que deve o museólogo fazer ao se deparar com tantas pedras que abarrotam as reservas? Impelidos por esta inquietação apresentamos um protocolo de processamento inicial para acervos líticos lascados, desenvolvido e aperfeiçoado no Laboratório de Documentação e Arqueologia da UFRB nos últimos 4 anos. Tal protocolo consiste de um conjunto de procedimentos práticos encadeados desde a entrada dos objetos na instituição, detalhando ações como triagem, higienização e marcação até o acondicionamento, com vista à manutenção das informações contextuais oriundas de campo. Ao mesmo tempo em que concilia e exemplifica aspectos da cadeia operatória da museologia o protocolo se coaduna com possíveis análises arqueológicas futuras sobre os artefatos, integrando esses campos do conhecimento, de modo que as condutas de um não invalidem ou interfiram nas interpretações tecnológicas do outro. Acima de tudo, este protocolo deseja munir o museólogo de um roteiro que o guie e descomplique o processamento dessas coleções, estabelecendo ações práticas exequíveis para a lida com as quase herméticas pedras lascadas.