Última alteração: 2019-06-28
Resumo
Em consonância com o tema proposto para este encontro, sobre a necessidade de discutir a museologia cada vez mais sob a égide da democracia, do museu para todos e de todos, proponho para este grupo uma discussão sobre a patrimonialização e a musealização de um bairro da capital pernambucana, o Bairro do Recife, um dos mais antigos da cidade. A partir de políticas culturais que alicerçaram a região com um intenso apelo para a preservação do patrimônio, foram se consolidando políticas de musealização, voltadas para a ressignificação cultural do bairro, que também culminaram na criação de dois grandes museus: o Paço do Frevo e o Cais do Sertão, ambos criados em 2014. Como atividade de refletir a democratização das experiências, esta proposta de comunicação propõe uma reflexão sobre o processo de musealização, analisado histórica e socialmente na região.
Os dois museus supracitados estão inseridos em um bairro que já passou por três grandes fases de ressignificação visual: com os holandeses no século XVII, que criaram as pontes e permitiu o avanço em direção ao continente; no início do século XX baseado no modelo haussmanianno, que modernizou a região portuária; e no final do século XX com a revitalização urbana. O bairro foi, inicialmente, apenas um istmo de Olinda, então capital da Capitania da Pernambuco no século XVI, e onde surgiu o núcleo primitivo da cidade. Era um lugar favorável a ser o porto devido ao seguro ancoradouro formado pelos arrecifes naturais, que deu origem ao nome do Povoado dos Arrecifes. Também era a restinga da capital Olinda e onde se fixaram os primeiros habitantes, devido ao atraente crescimento do comércio decorrente do próprio porto. A primeira fase de ressignificação veio com os holandeses no século XVII, que mudaram substancialmente a paisagem urbana e ambiental dos Arrecifes, com a implantação do primeiro plano urbanístico do Recife. Essa mudança urbana trouxe um crescimento do povoado em direção ao continente, com construção de pontes e outros investimentos que consolidou outros povoados nos arreadores e acelerou a urbanização do bairro, assim como sua decadência em relação com a urbanização de outros pontos da futura cidade do Recife.
Durante todo o século XX, o bairro sofreu intervenções estatais. A primeira delas, como dito acima, foi uma grande reforma urbana em 1910, baseada na Paris de Haussmann, assim como ocorreu em outras regiões, como no Rio de Janeiro. Com a grande ascensão dos centros urbanos na empreitada industrial no século XX, a modernização dos centros e expansão de suas fronteiras foi um processo sintomático de crescimento urbanístico evidente nas grandes cidades do país. O Recife da influência holandesa sofreu uma reforma em 1910, seguindo o modelo haussmaniano, que marcou sua paisagem urbanística e assim permanece nesse estilo até a atualidade. Essa reforma permitiu ao bairro avenidas largas e retas dada a pretensão de criar uma nova imagem para a cidade, seguindo os padrões de modernização europeu.
A modernização da cidade pôs abaixo a antiga característica colonial do bairro e reconstruiu a região do porto em estilo eclético, tendência que se proliferou no país, utilizando estruturas portuárias para a renovação urbana. Era necessário que chegassem até as elites locais uma nova imagem da cidade para que fosse uma região atrativa para investimentos. No meio desse processo, os centros precisavam cada vez mais de espaço e, consequentemente, as pessoas pobres que lá moravam, foram afastadas para zonas marginais. Esta ação é, também, muito característica do contexto atual de formação e modificação das cidades, visando promover mudanças em suas estruturas para interferir no contexto social e na utilização pelo público desses espaços. Assim como aconteceu com a primeira grande urbanização do bairro, que teve um momento de decadência e de esvaziamento de investimentos, também ocorreu no bairro do Recife na segunda metade do século XX, com a redução da utilização do transporte marítimo e diminuição das atividades portuárias, o bairro entrou em decadência e em um processo de deterioração. À procura de novos investimentos e de melhorar, novamente, a imagem da cidade, a partir de 1970 foram criadas estratégias de revitalização do bairro. Na verdade, nessa década ocorreu uma importante discussão sobre a preservação do patrimônio urbano, assim como a ampliação da noção do que é patrimônio, que considerava apenas obras isoladas, com construções realizadas em outras épocas, e passou a salvaguardar também construções mais recentes. Esse fato colocou em discussão o debate sobre a valorização do patrimônio para além do tradicionalmente já aceito. A década de 70 marcou um novo período nas práticas de preservação do patrimônio, a transição entre a antiga forma de preservação, baseada em critérios estilísticos, e outra que entendia as atividades de preservar como uma perspectiva integrada, abrangendo critérios econômicos e sociais. Foi também nesse período que surgiu o Centro Nacional de Referências Culturais, que tinha como propósito mapear práticas e saberes populares. O Centro antecipou a discussão sobre o conceito de patrimônio imaterial, que foi retomada pelo IPHAN anos mais tarde. A partir dessa década, foi fomentada a ideia do foco da preservação do patrimônio como recurso para desenvolvimento de cidades históricas. Em Pernambuco, isso se consolidou nas décadas seguintes com os planos de revitalização, como o Plano de Preservação dos Sítios Históricos da Região Metropolitana do Recife, em 1978. É a partir dessa lei, inclusive, que foi instituído o Bairro do Recife como uma das zonas de preservação rigorosas (ZPRs), definida como um conjunto antigo, pelo município.
Desde então, foram criadas leis para viabilizar que o bairro fosse revitalizado e que novos investidores se sentissem atraídos para utilizar a região em seus negócios. A intenção era de aumentar as parceiras privadas para tornar o bairro em um polo de cultura e consumo. Para que o plano de trazer novos investidores tivesse sucesso, era necessário que a imagem do bairro fosse modificada. Uma das parcerias privadas que foram feitas foi com a empresa Porto Digital Empreendimentos, firmada com a intenção de tornar o bairro em um polo de tecnologia, o que, de fato, reflete como uma importante parceria na modificação da “imagem” da região. Essa parceria reflete uma relação ambígua, entre a tecnologia e a abordagem, pelo governo e município, da tradição, que é a grande pauta do projeto urbanístico recifense.
Assim como elaborado neste texto, o longo processo de modificações urbanas do Recife Antigo permitiu que o bairro adquirisse características diversas em sua arquitetura. O que foi a justificativa para realizar o tombamento, em 1998 e abriu as portas para uma expansão da cultura pelas esferas políticas e econômicas, que utilizam o setor cultural, do patrimônio, como um recurso a ser explorado. O tombamento traz questões interessantes sobre o uso da região, pois é através dele que a requalificação urbana é legitimada e consegue amplo apoio para investimentos e mudanças na leitura dessa parte da cidade. O processo de revaloração mobilizou esferas, públicas e privadas, das áreas de economia, da política e da cultura, que demonstraram grande interesse em modificar o uso da cidade, com consequências sociais visíveis. A tomada de todo o sítio histórico era um investimento e as ações preservacionistas, então tomadas, flertavam com o discurso da salvaguarda do patrimônio e em torno da preservação da história.
Consequentemente, todo o investimento na região previa uma série de investimentos e de melhorias, o que criou um terreno favorável para a criação de museus que refletissem a culminância das ações preservacionistas. Nesse contexto, foram criados os dois museus citados no início do trabalho, que fazem parte da política de revitalização do Bairro do Recife, e acordo com seus planos museológicos, que são: o Paço do Frevo e o Cais do Sertão. Esse momento de mudança da “imagem” do bairro por meio da musealização “encarnada” não apenas na construção dos museus, mas na tomada das ruas por um percurso de apelo histórico/turístico, caracteriza uma retomada de outras instâncias legitimadoras que se apegam ao valor simbólico das representações locais através das temáticas dos museus (frevo – patrimônio imaterial, sertão – representação da identidade do ser nordestino).
O Paço do Frevo, equipamento público e municipal, inaugurado em 09 de fevereiro de 2014. Criado com a proposta de salvaguarda, pesquisa, exposição e divulgação do Frevo – manifestação cultural pernambucana, o museu nasce com a finalidade de se tornar espaço de referência para a transmissão da manifestação, que é Bem Cultural de Natureza Imaterial. Fica localizado no antigo prédio da Western Telegraphy Company, construído no final do século XIX, e que foi restaurado e reformado para abrigar o museu. O segundo museu é o Cais do Sertão, que foi inaugurado em 03 de abril de 2014, com mostras sobre o sertão cuja narrativa parte da obra de Luiz Gonzaga, cantor e compositor pernambucano. Está instalado em um antigo armazém no porto do Recife, à beira d’água, que foi reformado e preparado para abrigar o museu. Ele surge vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, mas em fevereiro de 2016, por meio da Empresa de Turismo de Pernambuco - Empetur, foi integrado à secretaria de Turismo, Esportes e Lazer.
Os dois museus caracterizam um novo tipo de espaço museal em Recife, exemplificando um projeto de musealização que está ganhando lugar nas produções culturais no Brasil e no mundo. Referem-se ao tipo de museu-espetáculo, ou os “novíssimos museus”, que são colocados em lugares estratégicos da produção de um estilo de cidade contemporânea, com muitos acervos digitais e um apelo turístico. São museus com arquiteturas e/ou curadorias assinadas e encomendadas, normalmente com parceiras de grandes grupos empresarias, no caso brasileiro geridos por Organizações Sociais (OS) e com Parcerias Público-Privada (PPP) – um modelo de gestão vigente, que além de gerir o repasse Municipal/Federal dos museus, se comprometem a captar recursos por meio de bilheterias, patrocínios, fazer locações, entre outras atividades comerciais. Além do Paço do Frevo e do Cais do Sertão, ambos em Pernambuco, outros casos exemplificam esse tipo de museu no Brasil, como o Museu do Amanhã (RJ), Museu de Arte do Rio – MAR (RJ), Museu do Futebol (SP) e o Museu da Língua Portuguesa (SP).
A patrimonialização de áreas urbanas, ou a criação dos museus, nestes casos, está atrelada à escolha do espaço urbano e das estratégias empreendedoras, mas também é importante delinear a sofisticação com que é elaborado o processo de reconhecimento identitário local vinculado ao discurso histórico e tradicional da região.
No caso do Recife Antigo, a identificação com o bairro é cada vez mais fortalecida por elementos constituídos em torno do discurso da tradição. Não por coincidência, os dois museus tratam de temáticas que ressaltam a identidade regional tradicional: um salvaguarda a manifestação popular, que é o frevo, e o outro tem como temática elaborar formas de representar o “ser nordestino”.
O Paço do Frevo e o Cais do Sertão, inaugurados no mesmo ano, estão inseridos nesta mesma proposta de requalificar a região do bairro do Recife. Seus prédios, seus objetos e seus discursos foram musealizados e é importante entender como a musealização entra nesse processo. A ressignificação do discurso que gerou os meios de requalificar o bairro são os mesmos que legitimaram a criação dos museus, fomentando a eficácia do apelo cultural aos modos da gentrificação. Com a musealização, novas realidade são criadas e se institui uma ruptura com a realidade social, que evoca novos valores simbólicos em torno do que está musealizado. Nesse caso, podemos pensar nos museus, e no contexto de criação deles, em como se evoca a realidade ao qual eles estão inseridos e os novos discursos que circundam os seus projetos expográficos, seus objetos, seus públicos. Há a intenção museal, em que todo o conjunto musealizado, ou os objetos, passam a ser movidos por uma intenção que evoca ações simbólicas em torno do que foi criado. Está perpetuamente criando realidades, discursos e mudanças sociais. Utilizar museus em políticas que visam requalificar espaços da cidade sem a preocupação em ser democráticas, é reiterar os discursos das lógicas políticas e de mercado nos ambientes musealizados. O desafio dos espaços museais é o de levar a crítica de como os museus têm grande potência de mudança com o seu caráter de fenômeno e assim, nas realidades criadas, produzir ambientes democráticos.
Como forma de produzir e discutir democracias, entender como um museu faz parte de um discurso de construção de cidade em área gentrificada é um tema delicado, pois pressupõe a exclusão de uns em detrimento da permanência de outros. No caso do Bairro do Recife, uma importante exclusão que pode ser colocada como mote aqui é a da Comunidade Nossa Senhora do Pilar, com poucos moradores no bairro, localizada na ilha, mas invisibilizada diante dos projetos de revitalização. A comunidade está em um tipo de interesse diferente para a gestão da cidade, como um programa de retomada de desenvolvimento. A comunidade não é tomada como parte da inclusão social que os planos de requalificação urbanística incluem. Dentro desse discurso de diferenças sociais em um bairro que recebe tanta atenção de grandes projetos culturais, é necessário pensar no papel que os museus desempenham dentro dessa realidade. A musealização como ato de criar discursos, imagens e experiências foge do tradicional “fazer museu”, da forma hegemônica, para ser mais efetiva como um diálogo. Ao olhar para os museus que nos propomos a analisar neste trabalho e entende-los como criadores de narrativas é importante entender que tipo de museologia se faz nesses lugares e como ela está associada a políticas culturais específicas para a revaloração do bairro, visando a sua capitalização. A crítica que deve estar presente é saber qual a importância e o impacto que os museus causaram no bairro, justamente com a participação nesse projeto de revaloração do bairro. E o que, de fato, eles produziram como impactante dispositivo museológico que atua para democratizar e descolonizar cada vez mais os usos dos museus e das cidades.