Última alteração: 2019-06-02
Resumo
No ano de 2016 a cidade do Rio de Janeiro sediava um dos mais importantes eventos desportivos em âmbito mundial: as Olimpíadas. No entanto, no mesmo ano, mais exatamente no dia 18 de maio de 2016, acontecia a inauguração do Museu das Remoções, na Vila Autódromo, situado na Zona oeste da cidade. Esses dois eventos fazem parte de uma mesma história – política, econômica e cultural – que tem início com a eleição da cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Em função dessa escolha, surge um projeto de cidade no qual o Rio de Janeiro ficaria conhecido pela marca de cidade Olímpica, o que supostamente mobilizaria investimentos privados para o desenvolvimento urbano e social da cidade. Porém, essa mudança também acarretaria uma disputa territorial no contexto da Vila Autódromo, localizada em uma das regiões do Rio que receberia investimentos para “acolher” os jogos. A história dessa região, marcada pela história das Olimpíadas, mas também pelas narrativas mais antigas do processo de gentrificação nessa cidade, se tornaria, ela mesma, objeto de disputa política com a decisão dos moradores locais de iniciarem um movimento de resistência que culminou, naquele ano, com a criação do museu.
Entre os anos de 2009 e 2015, mais de 700 famílias foram desabrigadas para que acontecesse a construção do parque olímpico na região que abarca o território onde está localizada a Vila Autódromo. Sem o devido respeito com a população que ali vivia há mais de 20 anos, casas foram demolidas, e muitas pessoas foram obrigadas a se retirar do local. Entretanto, ao longo de um processo intenso de negociações e luta pelo direito à permanência e barganha por parte dos agentes do Estado para a desocupação do espaço habitado, um grupo de 20 famílias, decide resistir, e dessa resistência surge o Museu das Remoções. Dos escombros da antiga Vila como a conheciam, esses moradores ergueram a sua resistência, que vem até o presente se configurando por meio da mobilização política aliada à musealização do território e da memória que nele vive.
O presente artigo tem como objetivo discutir a história da criação do Museu das Remoções no Rio de Janeiro, propondo uma reflexão sobre um novo papel para os museus contemporâneos frente aos embates políticos na arena pública da cultura. Entendemos que as políticas públicas para a cultura que estiveram associadas ao projeto de reformulação urbana no Rio de Janeiro na última década funcionaram como políticas de exclusão, exacerbando apagamentos culturais e acirrando as disputas territoriais que muitas vezes tiveram a participação do setor museológico. A imagem de cidade que se apresentou nas pautas políticas dos últimos governos do Estado e nas respectivas secretarias de cultura a eles associadas reforçavam a representação da desigualdade social e a valorização de patrimônios hegemônicos em detrimento das micronarrativas e dos patrimônios subalternos. É neste sentido que propomos, a partir da investigação da experiência do Museu das Remoções, uma concepção do dispositivo museu como uma ferramenta política de contestação e denúncia, que pode auxiliar na legitimação de um grupo em sua luta social, nesse caso pelo direito à moradia e pela sua representação nos regimes patrimoniais legitimados. Partimos, portanto, de uma ideia de musealização em seu sentido alargado, que nos permite ampliar as noções de valorização do patrimônio e de resistência social.
A luta
Os jogos olímpicos de 2016 intensificaram os processos de gentrificação que historicamente já vinham contribuindo para delinear o mapa atual da cidade do Rio de Janeiro. Através de projetos como o “Porto Maravilha” e a criação da marca de Cidade Olímpica, a cidade passou por diversas e violentas remoções, as quais o então prefeito, Eduardo Paes, justificava em nome de uma reurbanização da cidade para abrigar tanto os jogos olímpicos quanto os futuros turistas que o Rio passaria a receber depois de que o projeto fosse concluído.
Uma das áreas da cidade que foi afetada por essas remoções, foi a Zona Oeste, onde se localiza a Vila Autódromo, que até hoje luta contra as tentativas de remoção existentes desde 1994, no momento em que César Maia era o prefeito da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, a ocasião de sediar os jogos olímpicos foi a grande justificativa para que as remoções na Vila Autódromo fossem efetivas.
Durante vinte anos, os membros dessa comunidade lutaram contra o processo de remoção, que tinha como argumento oficial o dano urbano, estético e ambiental ao território habitado. Ignorava-se, entretanto, o histórico daquela comunidade em seu engajamento pela preservação do meio ambiente local, em um território arborizado, com projetos de saneamento básico em curso, localizado às margens da Lagoa de Jacarepaguá, onde vivia originalmente uma colônia de pescadores. A primeira ameaça de remoção à comunidade da Vila Autódromo data de 1992, quando a Procuradoria Municipal alegava que a Vila causava dano estético e ambiental à paisagem (Faulhaber & Azevedo, 2015). Quatro anos depois, a retirada das famílias se justificaria devido ao risco da ocupação que supostamente ameaçava as suas vidas. Nos anos 2000, a instalação de equipamentos esportivos para os Jogos Pan-Americanos de 2007 foi o novo argumento utilizado para viabilizar a remoção e a apropriação do território visando investimentos imobiliários naquela área. A partir de 2009, quando o Rio de Janeiro foi escolhido como a sede das Olimpíadas de 2016, as ameaças de remoções no local se intensificaram e estas começaram a ser uma realidade para a comunidade que testemunhou a destruição progressiva de seu patrimônio privado mais imediato. Naquele momento, o pretexto da construção do Parque Olímpico, do Centro de Mídias e das reformas de Mobilidade Urbana, levou a Prefeitura a propor acordos absurdos, sem qualquer abertura real à negociação popular.
Os antecedentes de um museu para resistir
É a partir do momento em que os habitantes da Vila Autódromo começaram a de fato ser removidos da comunidade, que um grupo de moradores se reúne e decide resistir a este processo. Se iniciam, então, uma série de atividades como as ocupações culturais e a construção de barricadas, com o intuito de reivindicar e lutar pelo direito de permanência no território que era a moradia daquela população. É neste momento de forte mobilização social no seio do grupo, centrada principalmente nos habitantes que atuavam na Associação de Moradores, que a ideia da construção de um museu surge.
Inicialmente proposto pelo museólogo Thainã de Madeiros, que acompanhava as lutas de resistência dos moradores da Vila Autódromo, o intuito da criação do museu foi o de fortalecer ainda mais o movimento de permanência no território, preservando a memória daquele lugar e de seus moradores, e servindo como um instrumento tanto para aquelas pessoas, quanto para outras comunidades que também enfrentam os processos de remoção feitos pelo Estado.
Pensado, por seus criadores (entre os quais especialistas da museologia, da arquitetura e das artes) e pelos habitantes locais (membros da já existente Associação de Moradores da Vila Autódromo), como uma ferramenta de luta e contestação social, o Museu das Remoções se baseou nas premissas da Museologia Social, estreitamente ligadas aos modelos europeus de museu de território e do ecomuseu. Tendo ganhando aderência em diversos países fora da Europa desde os anos 1980, no bojo da já datada Nova Museologia, o ecomuseu, na maior parte dos contextos em que foi colocado em prática, levantou questões sobre o próprio fazer museológico. Tais questões levaram ao pensamento crítico sobre os processos de avaliação realizados pelos museus ao selecionarem certos objetos como patrimônio. Ao engendrar novos regimes de atribuição de valor, ou de valoração, o ecomuseu deflagra a arbitrariedade das escolhas sobre o patrimônio pelos museus, a implicação das emoções patrimoniais e tudo aquilo que há de subjetivo na seleção dita ‘oficial’ colocada em prática pelos museus tradicionais. Mais do que inverter a lógica dos regimes de qualificação, ao evidenciar que estes são construídos socialmente, o ecomuseu torna visível a gramática museal como uma gramática axiológica.
O Museu das Remoções, em suas práticas de luta e na ação social pela manutenção dos habitantes em seu território, não seguiu estritamente nenhum modelo conhecido de museu ou de museologia. Com efeito, a forte ligação com a Museologia Social se viu aliada ao ímpeto de alguns especialistas, estudantes e adeptos da causa dos moradores locais a criarem um museu com base experimental, isto é, que não segue nenhum modelo instituído e hegemônico, e que concebe os próprios moradores, em sua resistência cotidiana, como o patrimônio primordial a ser musealizado. Pensado por alguns de seus habitantes como um “museu vivo”, o Museu das Remoções é um museu de luta pela vida e pelo valor da vida nas margens. Constituído por meio de articulações entre diferentes setores sociais, o museu propõe uma disputa de narrativas com o Estado até então inédita na história dos museus experimentais existentes em outros espaços vulneráveis à desigualdade social e à invisibilidade cultural que caracterizam a “paisagem” mais ampla daquilo que se entende e se valoriza como cidade.
A musealização
A partir do levantamento histórico sobre a trajetória recente e as transformações impostas no território da Vila Autódromo, nos propomos a investigar o uso da musealização como instrumento simbólico e político na produção de uma narrativa museal visando a resistência das pessoas num contexto social alterado. No caso analisado, o museu serve como proteção e instância de negociação da vida sobre o território, logo não podemos deixar de ver a musealização como ferramenta ativa de transformação social.
Entendendo a musealização como ferramenta suscetível de ser apropriada pelos grupos em lutas por sobrevivência e por existência social na cidade desigual, nos propomos a ver a axiologia museal da cidade do Rio de Janeiro como uma axiologia em disputa – por valores, por reconhecimento social e político e, em última instância, pela sobrevivência daqueles cujas vidas podem ser definidas – nos termos de Judith Butler (2015) – como vidas precárias, enquadradas em regimes de valor em que elas não têm nenhum valor. A precariedade, segundo essa autora, implica o fato de que a vida de alguém ou dos membros de alguns grupos está sempre, de alguma forma, nas mãos de um outro. O histórico das remoções e os atos de violência física, simbólica e psicológica sofridos pelos moradores da Vida Autódromo, antes de que ali fosse criado um museu, transmitem a mensagem irrefutável de que – para o Estado, para os investidores, para as organizações por detrás dos Jogos Olímpicos de 2016, etc. – aquelas vidas não são passíveis de luto.
A mensagem da luta por meio do dispositivo museu contraria esse regime de exclusão que leva ao extermínio de uns em prol do enriquecimento material de outros. Neste sentido, a musealização visando a valorização dos patrimônios vivos existentes na Vila, narradores de seu próprio passado e da história das remoções, transmite a mensagem de que aquelas vidas têm patrimônio e a de que aquelas vidas são patrimônio, e, portanto, merecem ser valoradas, num regime de valor outro onde aqueles corpos podem (re)existir.
Perspectivas de futuro para um museu de disputas
Desde a criação do museu e o fortalecimento da causa museal no interior do grupo de moradores que resistiram às remoções na Vila Autódromo, a luta pela manutenção do espaço a cada dia reconquistado e reapropriado se tornou uma luta pela construção e disseminação de uma narrativa outra de cidade e sobre as consequências dos Jogos Olímpicos de 2016. O discurso político vinculado à musealização é um discurso de oposição às narrativas patrimoniais oficiais, que desde 2012 elegeram o Rio de Janeiro, com seu meio urbano e natural, como “paisagem cultural” – rótulo conferido pela UNESCO para “patrimonializar” a cidade e produzir valor comercial, antes da realização dos eventos esportivos já citados. Hoje, as lutas de um museu que musealiza a vida são diversas e variantes. Os atores envolvidos são múltiplos, e o poder do Estado nunca deixou de ser uma ameaça às conquistas do passado no território reconfigurado.
Com uma rede de poder estabelecida e demandas sociais explícitas, o trabalho dos grupos sociais locais em museus de tipo comunitário mediados pelos especialistas é facilmente cooptado por diferentes agentes institucionais, sendo o Estado – como categoria mais ampla – o principal deles. Como consequência da metodologia própria imposta pelo Estado brasileiro, muitos grupos paralisam as suas atividades ou são levados a redirecionarem as suas demandas para as ações previamente propostas como exequíveis e ‘primordiais’ para o “desenvolvimento” coletivo. Neste sentido, os “modelos prontos” configuram um risco para a legitimação de alguns em detrimento da negociação coletiva como principal motor do museu.
Como a história recente de museus sociais tem demonstrado, a luta constante por legitimação leva os grupos a aderirem aos programas disponíveis, e a se adequarem a normas predeterminadas que constituem o “padrão”. As comunidades – os distintivos culturais e as demandas sociais do grupo – são formatadas na medida do que o Estado deseja fomentar. A luta que leva à submissão do museu ‘que não segue a um modelo’ aos moldes pré-determinados pelo Estado é uma luta para que esses museus tenham “os mesmos direitos de todos os museus clássicos” mesmo estando às margens das museologias tradicionais – e consequentemente dos investimentos estatais para o campo da cultura.